Depois de ler John Ruskin e Adolf Loos, para citar os que me parecem mais claros, me dei conta que Ruskin, Loos, e agora você, não se interessam pela arquitetura em si, lhes interessam outras coisas. É como se eu, como arquiteto, faço arquitetura porque é uma coisa que eu sei fazer, mas tampouco me preocupa a arquitetura em si, me preocupam coisas da vida. Agora, claro, eu escrevo, eu faço arquitetura, porque são coisas que sei fazer. Mas eu creio que se você está preocupado com a arquitetura mesma, não pode fazer coisas muito boas.
Leia a primeira parte dessa conversa aqui.
[Germán del Sol] Você disse muito bem, mas tem que dar o sentido que você deu ao final. Para fazer arquitetura… copio uma citação de Aldo Rossi que eu mudei com uma falta de modéstia enorme, mas fiz. Disse algo assim: que para fazer arquitetura, o arquiteto tem que esquecê-la. Ou seja, tem que chegar um momento em que a arquitetura seja esquecida e apareça o que é atemporal, ou seja, o que temos em comum –te digo isto, porque estive a semana passada em Cuzco–, o que temos em comum por exemplo com os Incas. O que tem que aparecer, não é a arquitetura atual nem de moda, mas a que se tem feito sempre. Tenho que esquecer-me da arquitetura e tenho que pensar nisso que disse você. Tenho que pensar nas coisas da vida. Por exemplo, na felicidade quando há pobreza. Em vez de atender à pobreza, entregando casas de meia água, apressados pela urgência como fazemos às vezes no Chile, há que entender que o importante não é dar teto, mas sim casa. Se você pensa que o povo só precisa de um refúgio de madeira para se proteger, se dá uma casa de meia água. E se você se da conta de que a dignidade é um consolo, deve contribuir com dignidade. Se a alguém lhe dão uma casa muito simples, e ele pode dizer: que bonita a minha casa!, ela adquire um valor incalculável para ele, e lhe dá momentos de felicidade.
Não posso pensar na arquitetura olhando planos, tenho que pensar a arquitetura lendo poesia e perguntando-me o que é que importa às pessoas? O que importa é o que vou dar-lhes. Por isso dizemos: “me esqueço da arquitetura”. Mas para esquecê-la, primeiro se tem que aprendê-la. Depois a esquece. Porque quando já se sabe escrever, não se está pensando na escrita, se está pensando no que vai dizer, para tanto a ortografia já não te ocupa.
Para todo o resto é igual. Não se pode estar apaixonado por alguém pensando no amor. Ou lendo livros sobre como amar. Não. Você gosta muito de alguém e se esquece do amor para amar e não ficar na teoria. Enquanto está com ela, não fica pensando: o amor será isso, ou será este outro? Não. O amor se sente com uma força interior que te mobiliza inteiro. A arquitetura também. Se diz: “agora eu vou fazer o que me dá vontade, porque já sei qual é o meu objetivo”.
Além disso, temos a vantagem de que na arte, ainda que as pessoas digam que: “não há nada escrito”, está tudo escrito: a história da arte tem mais de oito mil anos. E se você observa desde as múmias de Chinchorro até a arte atual, pode entender que sempre nos importou o mesmo, porque a condição humana não mudou nada.
Pode-se compreender artisticamente o que ainda está presente do passado através de sua arte, sem mais explicações. Alguém olha as múmias de Chinchorro e pensa: “o que continuam significando?” Elas transcendem uma múmia egípcia, que é somente um corpo melhor ou pior mantido. Mal mantido penso eu, pelo menos. As pessoas de Chinchorro não. Eles tiram a pele da pessoa morta e a envolvem ao redor de caules de cana e palhas para fazer um corpo novo, que se abstrai da aparência da pessoa morta. Eles fizeram com que a pessoa querida morta transcendesse. Não a deixaram fixada, como os faraós, num momento e num tempo, mas a lançaram imediatamente à frente, mudando o corpo. E se pensa “é uma atitude muito contemporânea”. Não é alheia ao que nós seguimos fazendo agora. Querer que seus mortos estejam em outro lugar que valha a pena, que, claro, não tem que ser o céu. Essa ocupação é a mesma que temos tido sempre. Levamos mais de oito mil anos fazendo o mesmo. Por isso sabe-se como o Inca dava esplendor a seu povo. Por que as pessoas de Cuzco se sentiam orgulhosas de pertencer a essa cultura? Porque foram capazes de encher uma praça que é como três vezes a Plaza de Armas de Santiago, com areia trazida das praias no lombo de lhamas. Por quê? Porque lhes deu vontade.
[IF] Para dizer que era possível.
[GS] Para mostrar que era possível. Você diz: eu pertenço a um grupo de gente que mata, mas não rouba. Estou orgulhoso! Outro diz, eu roubo, mas nunca matei ninguém. Entende a relação? Ou ele pertence a uma geração que não deixa que as crianças morram, como antes no Chile. Não há mortalidade infantil. Não estão desnutridos. Agora são grandes, altos, e sei lá o quê. Então, ele está orgulhoso. Essa é a parte prática. Na arquitetura, estaria orgulhoso, por exemplo, de que fôssemos capazes de manter Los Cerrillos sem aviões, sem casas, sem nada. Mas não, há que construí-lo. Por quê? Porque não cremos que fazer as coisas com cuidado reflita nossa beleza, que de outro modo é invisível. E só se deixa ver sua ausência que é a feiura. Ou seja, não cremos que o que importa é…
[IF] O que importa é invisível aos olhos, como diria o Pequeno Príncipe.
[GS] Sim, mas escuta também o que diz Teillier porque é impressionante. Eu quero te mostrar o que eu entendo quando leio poesia, o que leio quando leio poesia. Te digo de memoria. “O que importa”, diz Teillier, “não é a luz que acendemos todos os dias, mas a luz que um dia apagamos para ter a memória da luz”. Esse é o ponto. O que importa não é o óbvio. O que importa não é sempre fazer mais. Às vezes é fazer menos. Às vezes o que importa é estar calado. Às vezes o que importa não é ter mais luz, mas estar no escuro. Como isso não vai iluminar o entendimento? Você diz: talvez não temos que pôr luz no Hotel Explora de San Pedro de Atacama. Tem que estar escuro de noite para que a noite apareça. Mas custa! Queríamos que estivesse iluminado com umas lâmpadas bem pequenas e de pouquíssima potência, como as casa do vilarejo. Mas para alguns é perigoso que esteja tudo escuro, e pouco prático acender velas. Que pena!
[IF] O interessante da frase do Pequeno Príncipe é que é uma frase muito popular, todos falam que o importante é invisível aos olhos, mas ninguém a entende muito bem. O que vejo, e que está dito por ele, é que, como ele vive num planetinha muito pequeno que não se vê a partir da Terra, quando ele olha para o céu, todas as estrelas e todos os planetas são importantes. Não se sabe se está aqui, se está ali… todos são importantes. Através de uma coisa que não se vê, faz com que tudo seja importante.
[GS] Exupéry era genial em fazer que a maturidade e a sabedoria parecessem uma coisa de crianças e de animais. E fazer falar uma criança também é poético. Porque ao falar, a criança não está te desafiando. Se houvesse falado um adulto, haveria sido outro guru, o que fala. Em troca ele faz com que uma criança ou uma raposa nos digam a verdade. A faz penetrar no duro coração dos adultos, porque se está aberto, e não se defende do que dizem as crianças. Um diz: ah, as crianças! Que sábias são! Mas se dissesse Gandhi, então se diria: “um momento, vamos ver, vamos comprovar se é assim!”. É muito sábio dizer as coisas pela boca de outro.
O que importa é invisível aos olhos. Mas como diria eu? Eu diria distinto. As coisas mais importantes são um mistério, mas se vêm. Um mistério que se vê, mas que não se entende. Se o mistério não se vê, não existe. Ou seja, não é boa ideia associar o mistério com o invisível, porque então como se revela o mistério?…
Imagine se te convido para ver um filme de mistério, e te mostro a televisão em branco. E te digo: esse é um filme de mistério. Não se vê nada.
O que disse o Pequeno Príncipe é que vendo algo na vida de alguém e na dos demais, o que é importante para um ou para os demais não se vê claramente a primeira instância, há que senti-lo, há que pensa-lo. Mas você tem que ver algo que sugira algo mais que o visível. Se não, não é nada. Quero dizer: se está tudo escuro, então não me venha com que o essencial é invisível aos olhos. Está tudo escuro! Tem que haver algo que sugira. Então, tem que haver muro na arquitetura ou tem que haver um plano que está interceptado, tem que haver uma praça. Se não há nada… O curioso é que não há nada. Ou seja, pelo menos há que haver um plano.
[IF] Uma vez um amigo me disse algo sobre isso. Disse que uma das coisas mais incômodas que existe é quando alguém olha a uma pessoa que ri sozinha. Essa pessoa está feliz naquele momento, mas a outra não sabe por quê. Seria mais incômodo ainda se se tratasse de uma namorada, por exemplo. Sentiríamos ciúmes, medo de não saber o que está acontecendo. Ao final, é o mesmo que você disse.
[GS] Aí tem um ponto muito bom. Aí está o mistério. O bonito é elaborar uma ideia. À medida que conversamos a vamos armando de pouco a pouco e fazendo-a mais precisa. Justamente esse é o mistério: olhar a namorada ri de algo que você não sabe. Mas não seria nenhum mistério se a namorada estivesse calada sem rim nem fazer nada. Se não há sinais… Então o que disse o Pequeno Príncipe, há que entendê-lo como que o essencial é invisível aos olhos quando você está tentando ver. Em seu caso, o planeta que mais lhe importa não se vê porque é muito pequeno, e isso faz com que todos os demais sejam importantes ou resplandeçam. Mas, além do mais, os sentimentos, que são o mais importante, não se veem. Mas é relativo que não se veem. Se se dá atenção, sim se manifestam, provavelmente não com a visão, com o cuidado… Quer dizer, voltamos aos andenes para que se veja que tudo é comparável. Você vai ver os Andes Incas, e o que vê? Cuidado. Muito cuidado. Ou seja, um amor incrível para fazer as coisas. Por quê? Porque eles davam mais valor ao esforço que ao resultado. Então, não importava, imagino eu, que os andenes demoravam cem anos. Eles se punham a fazê-los e ao homem que trabalhava ali não lhe importava nada dedicar sua vida… cem anos, para fazer um puro andén, porque o sentido de sua existência era fazer, e não o resultado de fazer. Se o assunto é fazer, você me perguntará quantas obras eu fiz. E se eu te disser: levo toda a minha vida fazendo um andén em Farellones. Toda a vida? E te pagam bem? Não, tampouco. Sobrevivo.
[IF] É como um Gaudí fazendo a Sagrada Família.
[GS] Claro. É um sentido que se encontra no mesmo fazer com amor, pelo puro gosto de fazê-lo. Como sair para caminhar sem rumo fixo.
[IF] Não sei por que, mas nunca me interessei por poesia em versos. Talvez, porque nunca consegui fazê-las. Sempre gostei muito de contos, como os de Jorge Luis Borges.
[GS] É que Borges organiza seus contos como um arquiteto organiza obras. Que contos você lembra, para comentá-lo?
[IF] Pierre Menard, A Biblioteca de Babel, As Ruínas Circulares, claro.
[GS] Mas, você se lembra de um conto? Digo isso para conversar e aproveitar o tempo… Há um conto, há muitos contos curtos de Borges que são atemporais, que reúnem, como eu lhe dizia, a sensibilidade humana de todos os tempos. Há um sobre um rei e um poeta. Você leu?
[IF] Não lembro.
[GS] É curto. É um rei que constrói um palácio num reino em qualquer tempo em qualquer parte. Um palácio com seus pátios, suas torres, e suas salas. Quando está terminado, o rei orgulhoso do palácio chama um poeta e o convida a percorrê-lo. Ao final de sua visita, diz Borges, o poeta diz uma palavra ou uma frase, ninguém sabe, em que está contido o palácio inteiro, com suas torres, seus pátios e suas salas. Então, o rei o manda matar, porque sente que o arrebataram. O conto é maravilhoso a meu gosto, porque mostra o importante que um conjunto, neste caso de torres, pátios e salas, se converta num total mais importante que suas partes: um palácio. E que o total pode-se nomear com uma palavra. Uma palavra que ilumina o que é a obra. E é isso, com o que o poeta arrebata o rei: a palavra que contém tudo. Porque a palavra que contém é a palavra mais difícil, porque em geral, a palavra separa. Essa é a graça da palavra abstrata. Quando você dá nome às coisas, as separa da totalidade. Quando diz cadeira, a separa do resto dos móveis. Em troca, quando você diz móveis, reúne todos os móveis possíveis. Inclusive aos que estão a inventar-se. Mas se você diz sofá ou diz cadeira, a cadeira se separa da mesa, se separa do sofá. Não forma conjunto. A palavra que reúne é abstrata. A palavra móvel não tem forma, a palavra cadeira tem muitas. É muito importante na arquitetura a palavra que reúne a totalidade que há que alcançar. Porque às vezes não importa que algumas partes das obras sejam ruins, ao contrário, há momentos que têm que ser ruins, como nos filmes, há lugares que têm que ser feios. Mas, no entanto, o conjunto tem que ser… não sei…
[IF] Um conjunto íntegro…
[GS] Não. Uma totalidade… com partes ruins e partes boas, mas tem que ser uma totalidade maior que transcenda as partes que a constituem.
[IF] O todo é maior que a soma das partes.
[GS] Claro. O total tem que ser bom, mas nem todas as partes necessitam ser boas. Para que o total seja bom, o arquiteto tem que ter claro o que é o importante e anotá-lo para ter em conta durante toda a obra, para saber que coisas servem a esse propósito e quais não. E de novo voltamos ao conto de Borges que nos recorda que a palavra do arquiteto tem que se dizer ao princípio, não ao final. Tem que dizer: vou fazer uma casa. E essa casa vai ser assim, vai ser assado. Vai ser modesta, porque quero dar sentindo a uma pobreza escolhida. Ou vai ser esplêndida porque quero sair da minha pobreza material. E se a casa não é escolhida, tem que ser fruto da cultura, e alimentar-se de sua riqueza.
Um poncho mapuche como o que está atrás de você, dos que ainda fazem muitas culturas andinas, é um resumo dos ponchos que foram feitos desde sempre, corrigindo aqui e ali, animados por fazê-lo com cuidado. Assim é como, um poncho comum e corrente pode chegar a ser uma obra de arte. Mas também uma casa ou uma praça. A cultura é a mãe da obra de arte.
Reveja a primeira parte dessa conversa aqui.